domingo, 13 de setembro de 2009

Hobsbawm tropeça em Nietzsche

Hobsbawm tropeça em Nietzsche
Vontade de potência é um conceito nietzschiano. Darwinismo social é uma noção sociológica. O casamento das duas é possível, mas necessariamente o filho gerado é um híbrido, um tipo de mentalidade popular, aliás, pouco versada em Nietzsche ou Darwin. Isso ocorreu? Pode-se dizer que, na esteira da transição do século XIX para o XX, a
idéia de grupos e pessoas competindo segundo o lema “que vença o mais
forte” ou “o mais adaptado” entrou nas cabeças de vários socialistas
que, diferente de Marx, nunca leram direito Darwin e, então, chamaram
isso de “darwinismo social”, contra o qual tinham de lutar. Era mais
ou menos como hoje, quando uma esquerda pouco letrada acusa tudo que
não é a sua própria doutrina de “globalização” e “neoliberalismo”.
Muitas vezes, parte dessa esquerda não sabe bem o que está falando ao
pronunciar esses termos, mas, enfim, acredita que aquilo que não é
“socialismo” é alguma coisa tão ruim quanto o que se chamava de
“imperialismo”, num passado não muito distante. Esse tipo de amálgama
de idéias, não raro, move grandes grupos e partidos. Até aí, nada com
o que se possa espantar. O problema desses amálgamas populares é quando eles caem nas mãos dos historiadores ou, mais exatamente, quando ludibriam esses
profissionais. Principalmente aqueles historiadores que, uma vez engajados demais em doutrinas, acabam por aceitar acriticamente o que é contado pelos seus objetos de estudo. Tenho a impressão que a ansiedade de Hobsbawn em produzir uma história engajada, o trai em vários de seus livros e artigos. Em relação à sua leitura de Nietzsche e Darwin, penso que ele sofreu tomou um trança-pés de sua própria
doutrina. Na página 351 de A era dos impérios, ele diz que Nietzsche, apesar de
ser cético em relação à ciência, “seus próprios escritos, e notadamente seu trabalho mais importante, A vontade de poder, podem ser lidos como uma variante do darwinismo
social, um discurso desenvolvido com a linguagem da ‘seleção natural’,
neste caso uma seleção destinada a produzir nova raça dos ‘super
homens’, que iria dominar os humanos inferiores como o homem, na
natureza, domina e explora a criação bruta”. (1)
O parágrafo de Hobsbawm, citado acima, contém tantos erros quanto o
número de afirmações. Primeiro: Vontade de poder seria o livro mais
importante de Nietzsche? Justamente o livro manipulado pela irmã de
Nietzsche! Segundo: os escritos de Nietzsche possuem uma doutrina da
vinda dos super-homens como dominadores e exploradores do homem, como
o homem faz com o animal? Terceiro: Nietzsche usa da linguagem do
“darwinismo social” e da “seleção natural”?
As três perguntas podem ser respondidas, por qualquer estudante de
filosofia de graduação, com sonoros nãos. As primeiras duas questões
já foram exaustivamente corrigidas por vários scholars, em diversas
oportunidades. É estranho que Hobsbawm tenha se mantido surdo que já
se fez nesta área. Aliás, é difícil encontrar alguém que leu Nietzsche
com cuidado ainda usar de “super-homem” para Übermench. A opção por
“além do homem” é a melhor fórmula. E menos ainda há quem fale em
“raça de super homens”. Nietzsche nunca imaginou o Übermench como uma
situação sociológica e muito menos o descreveu como uma utopia ou como
algum projeto em relação ao qual ele teria algo positivo para dizer.
Aliás, parece que Hobsbawm confunde um dos tipos de Nietzsche, o tipo
“forte” ou “saudável” com o Übermench. Então, sobrou a questão de
Nietzsche e sua relação com o darwinismo social. Este é o ponto a que
me dedico abaixo.
Se Hobsbawn está dizendo que leitores de Nietzsche o entenderam de
maneira tosca e o assimilaram ao discurso do darwinismo social, pode-
se perdoar o historiador inglês. Todavia, quando lemos mais de uma vez
o trecho que citei, vemos que ele não está falando isso. Ele
compromete o próprio Nietzsche com o vocabulário da teoria da seleção
dos mais fortes.
Há em Nietzsche algo próximo de Darwin, isso é correto. Darwin e
Nietzsche usam o conceito de luta. Todavia, no darwinismo a luta pela
vida se faz em função da conservação da espécie. Nietzsche traz a luta
para o interior do organismo individual, considerando todo o corpo
como um conjunto de quase seres vivos. Além disso, não é a conservação
da espécie ou do indivíduo que se põe como motor da luta, em geral
enfatizada em uma situação de carência. Em busca da construção da
noção de vontade de potência, ele se põe contra a idéia de vida
enquanto aquilo que seria conduzido em função da preservação. Para
Nietzsche, a vida é exuberância e, portanto, a luta se faz sem
qualquer perspectiva de autoconservação. O que parece mais forte pode,
exatamente por isso, não se preservar e, sim, sucumbir. Uma célula que
tem mais chances que outras de abraçar uma gota de água pode conseguir
o alimento em excesso e, então, vir a explodir .
Assim, se por um dia fosse verdade – o que de fato não é – que
Nietzsche pudesse ter dito que haveria uma nova raça, mais forte,
dominando a mais fraca, por conta de algo como a “seleção natural” do
darwinismo social, isso já estaria solapado pelas suas próprias noções
de vontade de potência e de vida. O darwinismo social está associado a
um melhoramento da espécie por conta de que a luta termina por gerar o
que seriam aqueles que, principalmente em situação de desconforto, se
saíram melhor em função de fazer a espécie não sucumbir. A vontade de
potência e a vida, às vezes tomadas por Nietzsche como sinônimas, vão
na direção oposta disso: são bem menos teleológicas que o fio condutor
da preservação da espécie, da idéia de melhoria da espécie medida em
função da capacidade de sobrevivência.
Aliás, é preciso notar, também, que Darwin e o darwinismo social não
possuem tantas coisas em comum quanto à primeira vista pode parecer.
Darwin fez uma bela teoria, mas o darwinismo social nunca deixou de
ser apenas ideologia. Nietzsche não quis fazer teoria ou ideologia.
Ele estava preocupado em fazer filosofia. Mas, seu objetivo nunca
deixou de ser peculiar, especial, no sentido de não repetir o modo
tradicional de ser filosofar, o modo que ele identificou como sendo o
do platonismo. Nietzsche não queria repetir a metafísica, e sim romper
com ela. Há scholars, com os quais eu tendo a concordar (2), que dizem
que o que ele queria fazer, mesmo, era uma cosmologogia. Para inovar,
Nietzsche teria imaginado voltar para antes de Sócrates e, então,
recriar de um modo novo o que havia sido posto de lado pelo
socratismo.
Pode-se dar um chute nessa cosmologia de Nietzsche. Pode-se dizer que
ela, tanto quanto o darwinismo social, nunca deixaram de ser devaneios
típicos do final do século XIX. Mas, o que não de pode fazer de modo
algum, é dizer que Nietzsche, já maduro, escreveu coisas na linha do
darwinismo social. Hobsbawn escutou demais os socialistas do século
XIX e, em vez de contar a história deles, contou a história que eles
lhe contaram. Tropeçou não como filósofo, que nunca foi. Tropeçou
feio, mesmo, como historiador.
(1) Hobsbawm, E. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
(2) Sugestão de leitura: Marton, S. Nietzsche – das forças cósmicas
aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990.
(*) Agradeço os leitores de meus livros e os que acompanham meu
trabalho, que apontaram o Hobsbawm e sua visão de Nietzsche como
merecendo um reparo.
© 2009 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo

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