Segue três textos dele sobre a polêmica. A sequencia dos textos parte do mais recente para o menos...
Paradoxos da sociedade cachorreira
Escrevi sobre indiozinhos pedindo esmolas nas ruas de Porto Alegre.
Recebi uns oito comentários. Nada mais.
Grande indiferença.
Escrevi sobre cachorros. Minha caixa está entulhada de elogios, reclamações, críticas, insultos e apoios.
Eu me interesso pelos paradoxos sociais. Nem sempre faço julgamentos.
Mas gosto de dialogar com contradições.
Inclusive com as minhas.
As sociedades avançam e recuam ao mesmo tempo.
Estamos mais responsáveis em relação a certos animais, o que é bom, e menos responsáveis em relação a certos problemas sociais, o que é mau, como se o amor por certos animais crescesse de modo inversamente proporcional ao interesse pelos problemas humanos.
Certos animais, como os cachorros, podem ser tratados como crianças, enquanto certas crianças são tratadas como vira-latas. Denunciamos os maus tratos aos animais, o que é ótimo, e deslizamos para o super bom tratamento de alguns bichos, o que suscita interrogações.
Protegemos certos animais e comemos outros.
Peguemos situações extremas e extremamente corriqueiras: a mesma pessoa que denuncia o vizinho por ter abandonado um cachorro, o que é lamentável, o faz enquanto saboreia uma cordeirinho mamão ou um terneiro com batatas, o que é um costume socialmente aceito.
Mas já não por todos.
Quem tem a superioridade moral nesse caso?
Quem abandona o cachorro? Claro que não.
Quem come terneirinho com batatas jogando pedacinhos para seu cachorrinho calçando sapatinhos bordados?
O mundo é cheio de contradições.
Admiro os veganos. Conhecimento de wikipédia: “Para o vegano, animais não existem para os humanos, assim como o negro não existe para o branco nem a mulher para o homem. Cada animal é dono de sua própria vida, tendo assim o direito de não ser tratado como propriedade (enfeite, entretenimento, comida, cobaia, mercadoria, etc). Dessa forma veganos propõem uma analogia entre especismo, racismo, sexismo e outras formas de preconceito e discriminação”.
Os veganos querem abolir o cativeiro dos animais.
Não os comem.
Nem os carregam em carrinhos de criança.
Não os querem como propriedade.
Onde vai parar, do ponto de vista de um vegano, a superioridade moral de quem tem seu cachorrinho de estimação? Ou seja, em cativeiro (propriedade), ainda que dourado? As coisas são sempre mais complicadas.
Se eu não adorasse picanha e não fosse um homem banal, tentaria ser vegano. Há lógica e coerência aí. E ética.
Uma coerência quase ingênua, utópica, de quem sonha eliminar a contradição do mundo dos homens.
Fico estarrecido quando alguém me chama de radical por causa da minha posição em relação ao trato de certos seres humanos com seus cachorros.
Estou criticando o radicalismo.
É intelectualmente pobre, simplório, patético, alguém dizer que não gosto de cachorros por criticar o que me parece um excesso, a antropomorfização dos animais.
Tenho um amigo que diz volta e meia: quanto mais reacionário, mais cachorreiro.
Quanto mais anti-humanista, mais cachorreiro.
Não acredito que seja uma lei.
Conheço cachorreiros não reacionários.
E reacionários não cachorreiros.
Mas quando alguém marca hora no salão de cachorros para fazer as unhas e os pelos do seu animalzinho, aproveitando para bater um papo com amigos em que se fala mal das cotas para negros, do bolsa-família, das ajudas sociais e reclama-se a diminuição ao mais baixo possível da idade penal para colocar por 30 anos crianças na cadeia, dizendo que não são gente, isso soa como um choque, uma porrada na cara.
Ou como mais um paradoxo.
Que um cachorro tenha hora marcada numa estética enquanto milhões de pessoas esperam nas filas do SUS, soa como uma bofetada na face de muita gente, ainda que os donos dos cachorros não sejam os responsáveis por isso.
Concordo com o leitor que me diz ser mais grave a situação e que devo considerar toda forma de consumismo fútil, inclusive as que eu pratico, como algo chocante e inaceitável. É verdade. O consumismo é a nossa chaga.
Quando alguém me diz que os cachorros são elos com o divino ou seres mais racionais que os homens, só posso sorrir com bonomia, compreender e ir em frente.
Quando alguém me diz que o universo pet gera empregos e aquece a economia, eu só posso sorrir de novo diante desse pragmatismo que não perde tempo pensando em princípios.
Quando alguém me diz que o cachorro pode ser a única alegria e companhia de uma pessoa, eu louvo e aplaudo.
Mas me pergunto: que mundo é este em que uma pessoa só tem como alegria e companhia uma cachorro?
Que mundo é este em que os velhos são, cada vez mais, postos em asilos (clínicas geriátricas) enquanto os cachorros ganham quarto e tratamento privilegiado em casa?
Será o resultado de um mundo de desagregação da família ampla, de enfraquecimentos dos laços sociais, de isolamento, de solidão, de ceticismo, de egoísmo, de desresponsabilização com o complexo e de atomização?
Quando alguém me diz que só um cachorro dá amor incondicional, eu respondo: o belo do amor humano é quando ele impõe condições. O resto é submissão.
Por que protegemos alguns animais e não outros?
Fatos sociais. Realidades de uma cultura.
Que me critiquem por defender a humanidade, é algo que, mais uma vez, me faz sorrir com bonomia.
Que digam que estou promovendo o abandono de animais ou legitimando maus tratos, é algo que só me faz pensar uma coisa: quem diz isso, não me leu. Ou tem sérios problemas de interpretação de textos. Ou uma mente maniqueísta.
Quando me dizem que devo tratar meus medos e traumas, poderia ser deslegante e responder: vá tratar suas carências.
Mas não o faço, pois os medos, traumas e carências são sempre legítimos e incontestáveis.
Quando me dizem que sou ignorante, penso na "douta ignorância" que ilumina e convido cada um a pensar na sua.
Até Socrátes se achava ignorante.
Já lati demais.
Postado por Juremir Machado da Silva - 09/02/2011 16:18 - Atualizado em 09/02/2011 16:25
Mais polêmica sobre cachorros (1)
A polêmica sobre cachorros continua. Não tenho tempo de responder a todos os que me escreveram. Minha resposta coletiva saiu hoje no Correio do Povo. É a que segue:
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Meus sustos
Na semana passada, escrevi aqui sobre certos exageros na relação dos seres humanos com seus animais de estimação. Alguns leitores ficaram assustados com a minha opinião. Eu também tenho os meus sustos. Eu me assusto quando ouço alguém dizer que quanto mais conhece os homens, mais prefere os animais. Eu me assusto tentando imaginar com que seres humanos essas pessoas convivem. Eu me assusto quando alguém me diz que o afeto mais sincero nos é dado pelos animais. Mais uma vez, eu me assusto pensando nos amigos, amores e parentes de quem diz isso. Eu me assusto quando vejo crianças pedindo esmola e cachorros com hora marcada para fazer as unhas e pelos. Eu me assusto quando sei que pessoas gastam mais de mil reais por mês com seus cachorrinhos enquanto milhões de brasileiros não ganham isso para sustentar a família.
Eu me assusto quanto vejo alguém beijar cachorro na boca, carregá-lo em carrinho de criança ou chamá-lo de meu filhinho. Eu me assusto quando vejo carnívoros contumazes pregarem moral em defesa dos animais. Eu me assunto ao pensar que a mesma sociedade que protege os cães lambe os beiços comento um cordeirinho mamão assado. Por que essa discriminação com bois, porcos, ovelhas, peixes e galinhas? Eu me assusto pensando que nós, carnívoros, somos cúmplices de assassinatos em massa a cada dia. Eu me assusto com quem maltrata animais e com quem confunde criticar exageros dos seres humanos com não gostar de animais. Eu me assusto quando ouço especialistas explicarem que não há perigo com certos cães desde que eles sejam bem adestrados e conduzidos com guia curta, focinheira, enforcador e por quem tenha força suficiente para detê-los. Uau! Para quê? Por quê? Eu sou muito assustado. Eu me assusto com nossas contradições.
Eu me assusto quando uma criança é morta por um cão feroz, o que acontece com muita frequência, e só ouço palavras para justificar o animal. Eu me assusto com quem diz que só confia no seu cão ou no seu gato. Eu me assusto com que afirma só conversar com seu bichinho de estimação. Eu me assusto ao pensar que isso pode ser o sintoma de uma sociedade cada vez mais egoísta e umbilical, na qual se prefere destinar os melhores afetos e recursos para animais do que para crianças desconhecidas e necessitadas. Eu me assusto com quem diz “eu amo o meu cachorro” em lugar de “eu gosto muito do meu cachorro”. Eu me assusto pensando que não sou exemplo, não faço a minha parte, mas me choco com essa sublimação de afetos represados. Eu me assusto muito.
Eu me assusto inventando ironias para tentar entender essa obsessão. Cães e gatos não correm o risco de fumar crack ou de virar emo. Eu me assusto pensando que algumas pessoas não se assustam com isso e que se pode chamar a humanidade de perigosa, mas não um pit-bull. Eu me assusto pensando que essa paixão por bichos é um sintoma de solidão. Eu me assusto pensando que certas pessoas amam seus bichos porque podem adestrá-los e submetê-los ainda que lhes gabem a autonomia. Como o personagem de Robert Musil, eu me assusto quando um cavalo é chamado de genial. E um buldogue de meu amor.
Escrevi o texto que segue no Correio do Povo. Recebi muitos comentários (que poderão ser lidos na sequência)
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Cães e gostos
Em Santa Catarina, um pit-bull quase arrancou as mãos da irmã de um amigo meu. Vou provocar latidos, rosnados e ataques. Eu odeio pit-bull. É um bicho horrendo, com uma cara pavorosa, agressiva e assustadora. Não consigo entender o que pode levar alguém a ter um animal tão hediondo. Volta e meia, um pit-bull mata uma criança. Os defensores da raça saem a campo para dizer que a culpa foi dos seres humanos, pois o bichinho seria por natureza “dócil, leal e equilibrado”. Duvido. Sou traumatizado com cachorros. Na infância, fui mordido várias vezes. Eu tinha de ir todas as manhãs a uma casa onde morava um buldogue. Eu tinha horror daquele monstro, que saltava em cima de mim todos os dias. O dono sempre me dizia indiferente ao meu pânico: “É só não mostrar medo que ele é doce, amigo e brincalhão”. Uma ova. Eu morria de medo, ele pressentia e me atacava sem piedade.
Já vi gente juntando cocô de pit-bull na rua, pegando aquilo tudo com a mão dentro de um saco plástico. Eu prefiro passar uma temporada no presídio central a sofrer uma tortura como essa. Segundo um dono de pitt-bul que conheci, a culpa pela má imagens dessas feras é da mídia. Para mim a humanidade está perdendo definitivamente os pinos. Vejo gente beijando cachorro na boca, carregando cachorro em carrinho de criança, vestindo cachorro com roupinha de nenê e chamando cachorro de meu bem. Eu, hein! Nada tenho, em geral, contra os cachorros. Cachorra eu até entendo. Tive um cachorro, quando adolescente, o Lobo. Era um lindo vira-lata baio. Só gosto de vira-latas. É questão de identificação. Já tem gente defendendo até que o homem deve ser visto como o melhor amigo do cão. Por que não?
O politicamente correto antiespecismo permite que se fale mal do vizinho – sendo que cada um quase sempre tem mil razões para falar mal do vizinho, menos eu –, mas não do cachorro dele. Dizem que é uma questão de ética. Sou contra maltratar animais. Nem por isso acho bonito andar por aí com um monstrengo sempre prestes a tentar engolir alguém. Vou confessar, pronto: quando vejo uma mulher chamar um cachorro de meu filhinho, numa boa, eu me retiro. Se eu dia eu voltar a morar numa casa, terei um cachorro. No pátio. A sua obrigação será nunca assustar alguém e jamais pôr uma pata dentro de casa. Sei que tem cachorro limpinho, até mais cheiroso do que muita gente, mas não me acostumo. Sou de Palomas. Lá, quando cachorro entrava na casa, a gente gritava: “Sai pra lá cachorro”.
Sou grosso. Represento a “era Dunga” do jornalismo. Misturo Beethoven com José Mendes e Gildo de Freitas. Cachorro comigo é do lado de fora. A frescura canina está passando de todos os limites imagináveis. Tem gente que não pode viajar nas férias por não ter com quem deixar o cachorro. Em Paris, já pisei em muito cocô de cachorro. Meu trauma só aumentou. Essa obsessão por cachorros é pura transferência de energia afetiva represada. Carência. Crianças dão mais trabalho e, depois de certa idade, perde-se o controle sobre elas, que podem acabar no crack. Estou exagerando? Claro. Eu sempre exagero.
Postado por Juremir Machado da Silva - 05/02/2011 15:15
Tem uma página no FB "Prefiro cães do que gente". Doentio.Transferência afetiva de gente mau-amada.
ResponderExcluirEstas pessoas deveriam ceder suas casas pra gente necessitada e ir viver no canil, pra exercer sua preferência.