sábado, 29 de janeiro de 2011

Vida, tempo e aniversário


Vida, tempo e aniversário

O que é uma vida produtiva? Trabalhar muito. Trabalhar sempre. Acumular bens supérfluos. Nunca tirar férias.
E se trabalhar demais tornasse a vida improdutiva?
Michel Houellebecq, em “O mapa e o território”, pensando em gente como Bill Gates e Steve Jobs, faz a pergunta que considera essencial a partir de um certo estágio existencial: por que o homem trabalha?
Minha resposta: porque não sabe brincar. Meu amigo Philippe Joron publicou um livro intitulado “A vida improdutiva”. Não é de hoje que o culto ao produtivismo encontra oposição intelectual de peso. Paul Lafargue, genro de Karl Marx, era a favor do direito à preguiça. Atenção, nada de preconceitos com o cara. Era uma tese.
Tentar definir o homem é uma velha ambição. Já se disse que o homem era antes de tudo “faber”, “homo faber”.
Homem da produção, do trabalho, da labuta. O historiador holandês Johan Huizinga saiu por outro caminho. Para ele o homem é “ludens”. Homem do jogo, do lúdico, da brincadeira, da festa. Passamos a vida esperando as horas livres do trabalho para gozar. Daí nossa paixão pelos jogos e pelos que trabalham jogando.
Alguns fazem do trabalho o seu jogo. Mas aí pode ser um jogo perverso, um jogo que devora o jogador. Edgar Morin meteu o pé na porta: o homem nunca é uma coisa só. Nem “faber” nem “ludens”. Mas “faber”, “ludens” e “demens”. Como já diz Caetano Veloso, de perto ninguém é normal. Foi isso que ele disse, não? Não venham me dizer, por favor, que estão achando esta conversa difícil por causa de umas palavrinhas em latim e uns nomes de pensadores.
É barbada. Até os eleitores do Tiririca podem entender.
Faça o teste para saber se você é “faber”, “ludens” ou “demens”.
Você vive para trabalhar ou trabalha para viver?
Sente taquicardia domingo à tarde de saudade do escritório? Sente falta de preencher formulários e de fazer reuniões de trabalho sábados à tarde? Vibra quando o despertador toca na segunda às seis da manhã?
Sente-se nu quando está sem o seu crachá? Define-se pela sua posição socioprofissional?
Vê no seu chefe um modelo a ser seguido? Inventa desculpas para não tirar férias?
Leva trabalho para fazer na praia? Pensa nas suas planilhas quando está folheando a Playboy com a Cléo Pires nua? Considera que trabalhar menos de 12 horas por dia é coisa de preguiçoso? Veste a camisa da empresa?
A resposta é definitiva e cristalina. Se respondeu sim a todas as questões acima, você não é “ludens”. Nem será. Caso perdido. Divertimento para você é perda de tempo. Salvo como negócio. Você é daqueles que só leram um romance na vida e viram alguns filmes porque caía no vestibular. Tudo precisa ser útil. Sexo só para reprodução ou para recuperar a energia produtiva. Aposto que está pensando que é “faber”. Não. O diagnóstico é irrefutável. Você é “demens”. Uma vida só pode ser produtiva se tiver muitos momentos de “improdutividade”. É preciso saber consumir. Mais importante ainda é saber “se consumir”. Seja produtivo na vida: caia na gandaia.
Dia de aniversário é dia de refletir, repensar, fazer balanço e tocar em frente.

Postado por Juremir Machado da Silva - 29/01/2011 10:26



Papo cabeça sob o sol de 40 graus

Sejamos minimalistas.
Ao máximo.
Gilles Deleuze e Félix Guattari defenderam em Kafka o paradoxo da obra maior numa literatura menor.
Menos dramática e menos carregada de intrigas. Mais exaustiva por ser menos realista. Mais realista por ser menos possível. O Kafka de “A Metamorfose” é mais verossímil que Shakespeare inteiro. É só ler “Otelo”.
De “Romeu e Julieta” nem vamos falar. É novela das seis. Todo mundo sabe. Acordar transformado num inseto aparece como muito mais verossímil do que todas as coincidências e mortes em cascata das peças de Shakespeare.
Uma mostra do resumo de “Otelo”: “Iago instila no espírito do mouro o veneno do ciúme e Otelo pede provas. Iago descobre a prova sob a forma de um lenço, presente de Otelo, que fora perdido por Desdêmona e encontrado por Emília, dama de companhia de Desdêmona. Iago põe o lenço no quarto de Cássio que, ao encontrá-lo, faz presente dele a Bianca, sua amante. Iago conta a Otelo ter visto Cássio com o lenço e, quando Desdêmona não pode mostrá-lo ao marido, o general jura vingar-se de Desdêmona e de Cássio”.
Simples. Claro. Cristalino.
Já se vê que Shakespeare não fez os resumos das suas peças. Mas não economizou confusões.
Ao final de “Otelo”, Cássio mata Rodrigo; Otelo mata Desdêmona; Iago mata Emília; Otela suicida-se. Cartas descobertas nos bolsos de Rodrigo permitem desvendar toda a trama. É novela de televisão.
Shakespeare é um gênio. Sintetiza a alma humana e escreve frases inesquecíveis. As suas tramas, porém, são de um tempo, do teatro de uma época, e parecem-nos infantis. Otelo, quando se acha traído, passa a mão na testa como fazia recentemente um outro personagem de novela . Só faltava mugir.
A sofisticação de Shakespeare era popular e, como enredo e fabulação, aos olhos de hoje, pode ser revelar chata e totalmente inverossímil. Mudaram as convenções.
Todas as áreas de conhecimento evoluíram. A física atual é mais desenvolvida que a dos gregos. Só a arte teria regredido? Só os clássicos podiam ser gênios em literatura? Nada disso. Os grandes do passado chegaram antes às questões de sempre, aos dilemas fundamentais. Essa é a grande vantagem deles.
Chegaram primeiro ao pote. O clássico é um efeito de competência hiperdimensionado pela precedência, o tratamento adequado a temas recorrentes. Shakespeare e Machado de Assis são gênios. Mas escrever como eles, hoje, seria medíocre. Passou o tempo do cânone latino. Passará o tempo do cânone renascentista, etc.
Adeus à modernidade. Nunca houve tantos escritores geniais como agora. Gabriel Garcia Márquez, Mario Vargas Llosa, Lobo Antunes, Michel Houellebecq, Paul Auster, Don DeLillo e Maurice Dantec, para não alongar a relação, são tão geniais quanto foram Proust, Balzac e Flaubert em seus tempos.
Mas só teremos certeza disso daqui a uns trezentos anos.
Escrever, depois do esgotamento dos assuntos fundamentais, tornou-se muito mais difícil e exige muito mais talento. Assim como Pelé e Garrincha não andariam em campo no futebol atual, Shakespeare e Machado de Assis, salvo se mudassem tudo, iriam para o banco de reservas. Só Kakfa seria titular em qualquer época histórica.
Kafka continua intemporal.
Não tem as marcas da inverossimilhança que só as convenções de outra época justificavam. Basta de conversa fiada. A literatura não morreu. Os mortos não governam os vivos. A genialidade literária jamais será monopólio dos espectros. Assim como os escritores de hoje precisam dar mais, num regime mais exigente, também os leitores são mais preparados. Conhecedores das convenções, reclamam graus de verossimilhança ou contratos de leitura muito mais refinados. O público de Shakespeare, assim como os leitores de então, era infantil se comparado aos leitores avisados de agora. Só por isso a inverossimilhança total era aceita.
Na pós-modernidade, a crônica toma o lugar do ensaio.
O ensaísmo maior, a exemplo da literatura clássica, alimentava-se da sua pompa e da sua extensão.
Pregava o “sejamos maximalista, ao mínimo”. Quando morre um estilo, resta a provocação. O cânone é sempre um golpe de força. No Ocidente, foi o dos machos brancos. Todos os hábitos, cedo ou tarde, cedem lugar a novas obsessões.
A genialidade não passa de uma circunstância a posteriori. Kafkiana.

Postado por Juremir Machado da Silva - 25/01/2011 11:08
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/Opiniao/?Blog=Juremir%20Machado%20da%20Silva

domingo, 16 de janeiro de 2011

Ao azar da sorte


Sorte, azar, ano novo

Ao azar da sorte
Cada um com as suas manias.
Não jogo no bicho, não aposto na mega-sena, não entro em rifa, não faço fé em jogo de azar, não arrisco a sorte numa fezinha qualquer, não atiro um gole no chão para o santo, não acendo vela para o Internacional ganhar.
Mas, calma, gosto muito de mulher. Da minha, claro.
Cada louco com o seu destino: não gostaria de ficar rico pelo atalho. Já me aconteceu de acordar molhado de suor por causa de um pesadelo: eu ganhava milhões na loteria, ficava rico de doer e não precisava mais trabalhar.
Tinha dinheiro para tudo, nada me custava, tempo livre em demasia e falta de ocupação. Que horror!
Eu queria ganhar muito dinheiro trabalhando. Sou um caso de internação imediata. Entendo a obsessão de milhões de brasileiros pela mega-sena. Não tendo outro saída, o jeito é arriscar no improvável para esquecer o muito provável. A mega-sena é uma vacina ineficaz do futuro contra o presente. No fundo, isso me dá aquela sensação de que é um atestado de fracasso de uma nação. Quando o país não garante a expectativa de ascensão social pelo trabalho, resta jogar na loteria. Os números de apostas da mega-sena são para mim uma prova de que o Brasil continua maltratando a sua gente. Não contribuo. Resisto solitário.
Tem aqueles que ganham a vida razoavelmente, mas, ainda assim, sonham com os milhões da mega-sena.
Não gostam do que fazem ou, mesmo fazendo com certo gosto, repetem gestos mecânicos enquanto sonham com a liberdade, praia, sol, viagens, mulheres, homens e muita festa. O cara que joga na loteria para mim avisa que não leva fé em mais nada nem em si mesmo. Fico desconfiado. Acho que o sujeito, na primeira que der, vai sair pela tangente, deixar cair a peteca, pegar o desvio e o boné e abandonar o barco. Sou como aquela música quase brega, eu “tenho fé é na rapaziada que não foge da luta e enfrenta o leão”
Que mais o tipo poderia fazer? Atolado na falta de perspectiva, sonha com a alforria. A mega-sena é um sintoma, o sinal de que nos sentimos escravos, presos a atividades que não proporcionam prazer, obrigados a vender trabalho por migalhas, órfãos de sociedades que não se preocupam mais em prometer o paraíso na terra. Sempre penso que os jornais deviam publicar manchetes diárias de capa assim: A Miséria Continua. Nada! A mídia fecha os olhos para as favelas, banalizadas, e divulga o inusitado: Favelado Ganha na Mega-Sena. Fico aborrecido.
Imagino uma sociedade em que ninguém, mesmo não sendo rico, veria razão para jogar em loterias. Imagino uma nação em que cada um se sentiria feliz exercendo a sua profissão e não gostaria de perdê-la por dinheiro algum. Cada vez que alguém confere os números da mega-sena na minha frente, soltando o tradicional “não foi desta vez”, eu sou tomado de uma estranha melancolia. Uma voz dentro de mim sussurra: “Pobre dessa pessoa, não está feliz com o que faz, com o que vive, com o que tem, com o que lhe cabe.” Aí me apresso em relativizar: se bem não faz, mal não faz. Mas não consigo apagar a impressão de que tem algo errado.
Sou uma espécie de Policarpo Quaresma, aquele personagem nacionalista ao extremo de Lima Barreto, que pretendia salvar o Brasil das cultura alienígenas. Defendo a língua portuguesa, mesmo na ciência, contra a hegemonia ideológica do inglês. Coisas assim. Aí vem uma lufada do meu passado antropológico e me diz que as apostas são estratégias de resistência de um povo explorado pelas suas elites. Nada, portanto, mais legítimo e salutar. Respiro aliviado.
Mas já um grilo me diz que era exatamente isso que eu estava denunciando antes e que continuamos na mesma.
Tem dias em que vejo um jogo de futebol e fico abismado com a paixão dos brasileiros por esse esporte. Acompanho o desespero ou a excitação de um torcedor com a derrota do seu time e penso que um clube de futebol pode ser tudo na vida de alguém. Por um segundo, a beleza do futebol, que me envolve e apaixona, é encoberta por uma névoa de tristeza: puxa, essa gente só tem um time de futebol para sublimar as suas energias, depositar o seu entusiasmo, dividir a sua capacidade de sofrer, revelar a sua grande vontade de doação e de amor. Triste povo, entregue aos azares da sorte. Maravilhoso povo, capaz de inventar maneiras de continuar vibrando.
Ah, não uso cueca branca na virada do ano.
Às vezes, nem cueca! Postado por Juremir Machado da Silva - 04/01/2011

Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/opiniao/Default.aspx?blog=juremir+machado+da+silva