quinta-feira, 30 de outubro de 2008

VOCÊ TEM UM FURÚNCULO?


Olá amigos

Depois de muito tempo resolvo dar uma olhadinha no blog. Como esse espaço foi criado sem compromisso, então não existe necessidade de escrever todo dia ou coisa do tipo.
Deixo pra vcs um texto do cara que curto muito. Se liguem!!!


Rubem Alves


Há um ditado Zen que diz: "Nunca mostres o teu poema a um não poeta." Você me enviou os seus poemas. Isso quer dizer que você me considera um poeta. Mas eu mesmo não sei se sou poeta. Sei que escrevo poeticamente, porque brinco com imagens, sons e ritmos. Mas um poema nunca me pediu que o escrevesse. Régis de Moraes, amigo meu poeta, disse-me que quando há dentro dele um poema para ser escrito ele se sente como uma galinha que tem um ovo para ser botado. Eu nunca senti isso.

Você me enviou os seus poemas desejando que eu os leia. Nada mais justo: quem escreve deseja ser lido. Mas mais do que isso: você deseja que eu goste dos seus poemas. E que eu diga: "Você é um poeta! Merece ser publicado!" Está certo: quem escreve deseja que seus textos sejam transformados em livro.

Houve uma só vez, em toda a minha vida, em que lutei para que um livro de poemas fosse publicado. A Maria Antônia era minha aluna na UNICAMP. Tinha - e ainda tem - uma carinha de menina travessa. Acho que vai morrer com ela, a carinha travessa... Me deu um livrinho artesanal, Fogo-Pagô, com essa dedicatória: "Rubem: eu acho você engraçado e gosto de você e fico desejando que você leia esse livro e ache alguma graça nele. 1 abraço. Maria Antônia.

15.04.82." Amanhã completa 20 anos. Ela não foi a primeira mulher a me achar engraçado. Quando fui professor visitante no Union Theological Seminary (New York, 1971) meus alunos começaram a vir ao meu escritório, na véspera da minha volta ao Brasil, para se despedirem. Chegou uma jovem, longos cabelos ruivos, sardenta. Olhou-me nos olhos e disse: "Sonhei com você..." Sorri, imaginando o que ela teria sonhado. "Sonhei que você era um palhaço..." Aí meu sorriso virou riso: ela havia entendido. Sou palhaço. E estou em boa companhia: no final de um dos seus poema Nietzsche disse que ele era apenas um palhaço, apenas um poeta... O fato é que o rosto de menina travessa e o fato de ela me haver achado engraçado me seduziram. "Fogo-pagô canta manso e triste/ fazendo eco no fundo da gente/ encavalando alegria e agonia,/ que daí ficam disputando entre si/ prá reinarem no peito..." Foi amor à primeira vista porque o poema dela chamou pelo nome certo o canto que eu ouvia sempre no meu peito... Depois ela escreveu outros. Um deles eu batizei e prefaciei, Ceriguela. Até que, indignado com a dificuldade que têm os poetas para publicar seus poemas, batalhei com o pessoal da Papirus e eles também sentiram o que eu sentia e publicaram o Terra de formigueiro.

Mas não me julgo em condições de avaliar poemas. Eu não sou poeta. Assim, faltam-me as credenciais. E o pior: falta-me tempo. A Natália, minha assessora, comentou dias atrás que, se eu fosse ler todos os textos que me são enviados para serem apreciados eu teria que abandonar tudo o que faço, deixar de escrever minhas coisas, e ler sem parar, 24 horas por dia, e ainda assim eu não daria conta... Razão por que eu nem mais aceito convites para participar de bancas de tese. O tempo não dá! O tempo não dá! O Drummond se viu em situação idêntica e até escreveu um texto bravo com o título Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz. Não, não era a paz mundial. Era a paz dele... Ele também não dava conta. Ele só queria ter tempo para escrever as coisas dele e ler os livros que quisesse...

Lamento mas minha prioridade de vida é botar os meus ovos, escrever as coisas que me dóem. Igual a um furúnculo... Você já teve furúnculo? Incha, fica vermelho, lateja, dói, forma aquele ponto amarelo de pus. Tem de ser espremido. Dói para ser espremido. Mas é só através da dor do espremer que ele pára de doer. Escrever é assim. Um texto a ser escrito é um furúnculo que dói. Os seus poemas dóem em você? Ficam atormentando você, pedindo para ser escritos? Ou são simples coceiras? Só se meta a ser poeta se seus poemas doerem muito... Escrever poesia é um ofício terrível. Primeiro porque há poetas gigantescos como Fernando Pessoa, Hilda Hilst, Cecília Meireles. Segundo, porque é muito difícil que as editoras publiquem livros de poemas. Poesia, com raríssimas exceções, é mau negócio. Dá prejuízo.

Seus poemas nascem de inspiração? Leia atentamente essa precisa descrição da experiência da inspiração, feita por Nietzsche e, honestamente, diga se esse é o seu caso. "Será que alguém, ao final do século dezenove, tem uma idéia clara daquilo a que os poetas das eras fortes chamaram pelo nome de inspiração? Se não, vou descrevê-la. Repentinamente, com certeza e sutileza indescritíveis, algo se torna visível, audível, algo que nos sacode em nossas últimas profundezas e nos lança por terra... A gente não busca; ouve. Não pede ou dá; aceita. Como um relâmpago, um pensamento se ilumina de forma irresistível, sem hesitações com respeito à sua forma. Eu nunca tive qualquer escolha! Tudo acontece de forma involuntária no mais alto grau, mas como uma onda enorme de liberdade, um sentimento de algo absoluto, de poder, de divindade." É assim que acontece com você?

Se é assim que acontece com você, então, vale a pena prosseguir. Não pelos livros que você venha a publicar, mas pela simples alegria de... botar o seu ovo... Mas é preciso honestidade para distinguir entre furúnculos e coceiras...

O que melhor posso fazer é dar a você, e a todos os que amam poesia, algumas sugestões.

Leia, em primeiro lugar, o maravilhoso livro de Rainer Maria Rilke Cartas a um jovem poeta. São cartas de enorme delicadeza, sensibilidade e honestidade. Rilke as escreveu a um jovem que lhe enviara poemas de sua autoria, pedindo que o poeta desse a sua opinião. Que tempo maravilhoso aquele, quando o tempo andava devagar, e havia tempo para se escrever longas cartas em papel, com tinta, caneta, mataborrão, envelope, selo e caminhadas até o correio... Tempo feliz aquele, quando a chegada do carteiro era um evento grave, pois se sabia que cartas eram, sempre, portadoras do essencial.

Leia, depois, o Manoel de Barros, poeta matogrossense... Livro sobre nada, Livro de pré-coisas, Arranjos para assobio, O livro das ignorãnças... O Manoel de Barros é mestre de aforismos, afirmações curtas, marteladas na cabeça de um prego, que desarrumam o arrumado e fazem pensar. "Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria". "A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos." "Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção." "Tem mais presença em mim o que me falta." "Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar." "Eu queria avançar para o começo. Chegar ao acriançamento das palavras." "Deus deu forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar - como em Chagall..."

E ler, bovinamente, ruminantemente, em voz alta, os poetas... É preciso ler em voz alta. Poesia não é pensamento. É música. Você sabe ler? Claro: eu sei que você sabe ler... Mas não é isso que estou perguntando. Estou perguntando se, ao ler, suas palavras fazem música. E os seus poemas? Que música fazem eles? Leia Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, Mário Quintana, Adélia Prado, Cecília Meireles, Hilda Hilst, Chico Buarque, Vinícius...

Para terminar, vou transcrever o que Rilke escreveu ao término de sua primeira carta: "Mas talvez se dê o caso de ter o senhor de renunciar a se tornar poeta. Basta sentir que poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo..."